O Mandarim by Eça Queirós


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Page 3

Veio-me � id�a de repente que tinha diante de mim o Diabo: mas logo todo
o meu raciocinio se insurgiu resolutamente contra esta imagina��o. Eu
nunca acreditei no Diabo--como nunca acreditei em Deus. J�mais o disse
alto, ou o escrevi nas gazetas, para n�o descontentar os poderes
publicos, encarregados de manter o respeito por taes entidades: mas que
existam estes dois personagens, velhos como a Substancia, rivaes
bonacheir�es, fazendo-se mutuamente pirra�as amaveis,--um de barbas
nevadas e tunica azul, na toilette do antigo Jove, habitando os altos
luminosos, entre uma c�rte mais complicada que a de Luiz XIV; e o outro
enfarruscado e manhoso, ornado de cornos, vivendo nas chammas
inferiores, n'uma imita��o burgueza do pitoresco Plut�o--n�o acredito.
N�o, n�o acredito! C�o e Inferno s�o concep�es sociaes para uso da
plebe--e eu perten�o � classe-m�dia. Rezo, � verdade, a Nossa Senhora
das D�res: porque, assim como pedi o favor do senhor doutor para passar
no meu acto; assim como, para obter os meus vinte mil reis, implorei a
benevolencia do senhor deputado; igualmente para me subtrahir � tisica,
� angina, � navalha de ponta, � febre que vem da sargeta, � casca de
laranja escorregadia onde se quebra a perna, a outros males publicos,
necessito ter uma protec��o extra-humana. Ou pelo rapa-p� ou pelo
incensador o homem prudente deve ir fazendo assim uma serie de sabias
adula�es desde a Arcada at� ao Paraiso. Com um compadre no bairro, e
uma comadre mystica nas Alturas--o destino do bacharel est� seguro.

Por isso, livre de torpes supersti�es, disse familiarmente ao individuo
vestido de negro:

--Ent�o, realmente, aconselha-me que toque a campainha?

Elle ergueu um pouco o chap�o, descobrindo a fronte estreita, enfeitada
d'uma gaforinha crespa e negrejante como a do fabuloso Alcides, e
respondeu, palavra a palavra:

--Aqui est� o seu caso, estimavel Theodoro. Vinte mil reis mensaes s�o
uma vergonha social! Por outro lado, ha sobre este globo coisas
prodigiosas: ha vinhos de Borgonha, como por exemplo o _Roman�e-Conti_
de 58 e o _Chambertin_ de 61, que custam, cada garrafa, de dez a onze
mil reis; e quem bebe o primeiro calix, n�o hesitar�, para beber o
segundo, em assassinar seu pai... Fabricam-se em Paris e em Londres
carruagens de t�o suaves molas, de t�o mimosos estofos, que � preferivel
percorrer n'ellas o Campo Grande, a viajar, como os antigos deuses,
pelos c�os, sobre os f�fos coxins das nuvens... N�o farei � sua
instruc��o a offensa de o informar que se mobilam hoje casas, d'um
estylo e d'um conforto, que s�o ellas que realisam superiormente esse
regalo ficticio, chamado outr'ora a �Bemaventuran�a�. N�o lhe fallarei,
Theodoro, d'outros gozos terrestres: como, por exemplo, o Theatro do
_Palais Royal_, o _baile Laborde_, o _Caf� Anglais_... S� chamarei a sua
atten��o para este facto: existem s�res que se chamam
Mulheres--differentes d'aquelles que conhece, e que se denominam Femeas.
Estes s�res, Theodoro, no meu tempo, a paginas 3 da Biblia, apenas
usavam exteriormente uma _folha de vinha_. Hoje, Theodoro, � toda uma
symphonia, todo um engenhoso e delicado poema de rendas, _baptistes_,
setins, fl�res, joias, cachemiras, gazes e velludos... Comprehende a
sat�sfa��o inenarravel que haver�, para os cinco dedos de um christ�o,
em percorrer, palpar estas maravilhas macias;--mas tambem percebe que
n�o � com o troco d'uma placa honesta de cinco tost�es que se pagam as
contas d'estes cherubins... Mas ellas possuem melhor, Theodoro: s�o os
cabellos c�r do ouro ou c�r da treva, tendo assim nas suas tran�as a
apparencia emblematica das duas grandes tenta�es humanas--a fome do
metal precioso e o conhecimento do absoluto transcendente. E ainda teem
mais: s�o os bra�os c�r de marmore, d'uma frescura de lirio orvalhado;
s�o os seios, sobre os quaes o grande Praxiteles modelou a sua Ta�a, que
� a linha mais pura e mais �deal da Antiguidade.... Os seios, outr'ora
(na id�a d'esse ingenuo Anci�o que os formou, que fabricou o mundo, e de
quem uma inimizade secular me veda de pronunciar o nome), eram
destinados � nutri��o augusta da humanidade; socegue por�m, Theodoro;
hoje nenhuma maman racional os exp�e a essa func��o deterioradora e
severa; servem s� para resplandecer, aninhados em rendas, ao gaz das
_soir�es_,--e para outros usos secretos. As conveniencias impedem-me de
proseguir n'esta exposi��o radiosa das bellezas, que constituem o _Fatal
Feminino_... De resto as suas pupillas j� rebrilham.... Ora todas estas
coisas, Theodoro, est�o para al�m, infinitamente para al�m dos seus
vinte mil re�s por mez... Confesse, ao menos, que estas palavras teem o
veneravel sello da verdade!...

Eu murmurei com as faces abrasadas:

--Teem.

E a sua voz proseguiu, paciente e suave:

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Books | Photos | Paul Mutton | Wed 8th Jan 2025, 5:58