O Mandarim by Eça Queirós


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Page 2

No entanto procurava distrahir-me. E como as circumvolu�es do meu
cerebro me n�o habilitavam a comp�r odes, � maneira de tantos outros ao
meu lado que se desforravam assim do tedio da profiss�o; como o meu
ordenado, paga a casa e o tabaco, me n�o permittia um vicio--tinha
tomado o habito discreto de comprar na feira da Ladra antigos volumes
desirmanados, e � noite, no meu quarto, repastava-me d'essas leituras
curiosas. Eram sempre obras de titulos ponderosos: Galera da Innocencia,
Espelho Milagroso, Tristeza dos Mal Desherdados... O typo venerando, o
papel amarellado com picadas de tra�a, a grave encaderna��o freiratica,
a fitinha verde marcando a pagina--encantavam-me! Depois, aquelles
dizeres ingenuos em letra gorda davam uma pacifica��o a todo o meu s�r,
sensa��o comparavel � paz penetrante d'uma velha c�rca de mosteiro, na
quebrada d'um valle, por um fim suave de tarde, ouvindo o correr d'agua
triste...

Uma noite, ha annos, eu come��ra a l�r, n'um d'esses in-folios vetustos,
um capitulo intitulado _Brecha das Almas_; e ia cahindo n'uma
somnolencia grata, quando este periodo singular se me destacou do tom
neutro e apagado da pagina, com o relevo d'uma medalha d'ouro nova
brilhando sobre um tapete escuro: cop�o textualmente:

�No fundo da China existe um Mandarim mais rico que todos os reis
de que a Fabula ou a Historia contam. D'elle nada conheces, nem o
nome, nem o semblante, nem a s�da de que se veste. Para que tu
herdes os seus cabedaes infindaveis, basta que toques essa
campainha, posta a teu lado, sobre um livro. Elle soltar� apenas um
suspiro, n'esses confins da Mongolia. Ser� ent�o um cadaver: e tu
ver�s a teus p�s mais ouro do que p�de sonhar a ambi��o d'um avaro.
Tu, que me l�s e �s um homem mortal, tocar�s tu a campainha?�

Estaquei, assombrado, diante da pagina aberta: aquella interroga��o
�homem mortal, tocar�s tu a campainha?� parecia-me fac�ta, picaresca, e
todavia perturbava-me prodigiosamente. Quiz l�r mais; mas as linhas
fugiam, ondeando como cobras assustadas, e no vazio que deixavam, d'uma
lividez de pergaminho, l� ficava, rebrilhando em negro, a interpella��o
estranha--�tocar�s tu a compainha?�

Se o volume fosse d'uma honesta edi��o Michel-Levy, de capa amarella,
eu, que por fim n�o me achava perdido n'uma floresta de ballada allem�,
e podia da minha sacada v�r branquejar � luz do gaz o correame da
patrulha--teria simplesmente fechado o livro, e estava dissipada a
allucina��o nervosa. Mas aquelle sombrio in-folio parecia estalar magia;
cada letra affectava a inquietadora configura��o d'esses signaes da
velha cabala, que encerram um attributo fatidico; as virgulas tinham o
retorcido petulante de rabos de diabinhos, entrevistos n'uma alvura de
luar; no _ponto d'interroga��o_ final eu via o pavoroso gancho com que o
Tentador vai fisgando as almas que adormeceram sem se refugiar na
inviolavel cidadella da Ora��o!... Uma influencia sobrenatural
apoderando-se de mim, arrebatava-me devagar para f�ra da realidade, do
raciocinio: e no meu espirito foram-se formando duas vis�es--d'um lado
um Mandarim, decrepito, morrendo sem d�r, longe, n'um kiosque chinez, a
um _ti-li-tin_ de campainha; do outro toda uma montanha de ouro
scintillando aos meus p�s! Isto era t�o nitido, que eu via os olhos
obliquos do velho personagem embaciarem-se, como cobertos d'uma tenue
camada de p�; e sentia o fino tinir de libras rolando juntas. E immovel,
arripiado, cravava os olhos ardentes na campainha, pousada pacatamente
diante de mim sobre um diccionario francez--a campainha prevista, citada
no mirifico in-folio...

Foi ent�o que, do outro lado da mesa, uma voz insinuante e metallica me
disse, no silencio:

--Vamos, Theodoro, meu amigo, estenda a m�o, toque a campainha, seja um
forte!

O _abat-jour_ verde da vela punha uma penumbra em redor. Ergui-o, a
tremer. E vi, muito pacificamente sentado, um individuo corpulento, todo
vestido de preto, de chap�o alto, com as duas m�os cal�adas de luvas
negras gravemente apoiadas ao cabo d'um guarda-chuva. N�o tinha nada de
phantastico. Parecia t�o contemporaneo, t�o regular, t�o classe-m�dia
como se viesse da minha reparti��o...

Toda a sua originalidade estava no rosto, sem barba, de linhas fortes e
duras; o nariz brusco, d'um aquilino formidavel, apresentava a express�o
rapace e atacante d'um bico d'aguia; o c�rte dos labios, muito firme,
fazia-lhe como uma bocca de bronze; os olhos, ao fixar-se, assemelhavam
dois clar�es de tiro, partindo subitamente d'entre as sar�as tenebrosas
das sobrancelhas unidas; era livido--mas, aqui e al�m na pelle,
corriam-lhe raia�es sanguineas como n'um velho marmore phenicio.

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Books | Photos | Paul Mutton | Tue 7th Jan 2025, 1:34