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Page 10
E eu, no entanto, vivia triste...
* * * * *
Todas as vezes que entrava em casa estacava, arripiado, diante da mesma
vis�o: ou estirada no limiar da porta, ou atravessada sobre o leito
d'oiro--l� jazia a figura bojuda, de rabicho negro e tunica amarella,
com o seu papagaio nos bra�os... Era o Mandarim Ti-Chin-F�! Eu
precipitava-me, de punho erguido: e tudo se dissipava.
Ent�o cahia aniquilado, todo em suor, sobre uma poltrona, e murmurava no
silencio do quarto, onde as v�las dos candelabros davam tons
ensaguentados aos damascos vermelhos:
--_Preciso matar este morto_!
E todavia, n�o era esta impertinencia d'um velho phantasma pan�udo,
accommodando-se nos meus moveis, sobre as minhas colchas, que me fazia
saber mal a vida.
O horror supremo consistia na id�a, que se me crav�ra ent�o no espirito
como um ferro inarrancavel--_que eu tinha assassinado um velho_!
N�o f�ra com uma corda em torno da garganta � moda musulmana; nem com
veneno n'um calix de vinho de Syracusa, � maneira italiana da
Renascen�a; nem com algum dos methodos classicos, que na historia das
Monarchias teem recebido consagra�es augustas--a punhal como D. Jo�o
II, � clavina como Carlos IX...
Tinha eliminado a creatura, de longe, com uma campainha. Era absurdo,
phantastico, faceto. Mas n�o diminuia a tragica negrura do facto: _eu
assassin�ra um velho_!
Pouco a pouco esta certeza ergueu-se, petrificou-se na minha alma, e
como uma columna n'um descampado dominou toda a minha vida interior: de
sorte que, por mais desviado caminho que tomassem os meus pensamentos
viam sempre negrejar no horisonte aquella Memoria accusadora; por mais
alto que se levantasse o v�o das minhas imagina�es, ellas terminavam
por ir fatalmente ferir as azas n'esse Monumento de miseria moral.
Ah! por mais que se considere Vida e Morte como banaes transforma�es da
Substancia, � pavoroso o pensamento--que se fez regelar um sangue
quente, que se immobilisou um musculo vivo! Quando depois de jantar,
sentindo ao lado o aroma do caf�, eu me estirava no soph�, enlanguecido,
n'uma sensa��o de plenitude, elevava-se logo dentro em mim, melancolico
como o c�ro que vem d'um ergastulo, todo um susurro de accusa�es:
--E todavia tu fizeste que esse bem-estar em que te regalas, nunca mais
fosse gozado pelo veneravel Ti-Chin-F�!...
Debalde eu replicava � Consciencia, lembrando-lhe a decrepitude do
Mandarim, a sua g�ta incuravel... Facunda em argumentos, gulosa de
controversia, ella retorquia logo com furor:
--Mas, ainda na sua actividade mais resumida, a vida � um bem supremo:
porque o encanto d'ella reside no seu principio mesmo, e n�o na
abundancia das suas manifesta�es!
Eu revoltava-me contra este pedantismo rhetorico de pedagogo rigido:
erguia alto a fronte, gritava-lhe n'uma arrogancia desesperada:
--Pois bem! Matei-o! Melhor! Que queres tu? o teu grande nome de
Consciencia n�o me assusta! �s apenas uma pervers�o da sensibilidade
nervosa. Posso eliminar-te com _fl�r de laranja_!
E immediatamente sentia passar-me n'alma, com uma lentid�o de briza, um
rumor humilde de murmura�es ironicas:
--Bem, ent�o come, dorme, banha-te e ama...
Eu assim fazia. Mas logo, os proprios len�oes de Bretanha do meu leito
tomavam aos meus olhos apavorados os tons lividos d'uma mortalha; a agua
perfumada em que me mergulhava arrefecia-me sobre a pelle, com a
sensa��o espessa d'um sangue que coalha: e os peitos n�s das minhas
amantes entristeciam-me, como lapides de marmore que encerram um corpo
morto.
Depois assaltou-me uma amargura maior: comecei a pensar que Ti-Chin-F�
tinha de certo uma vasta familia, netos, bisnetos tenros, que,
despojados da heran�a que eu comia � farta em pratos de S�vres, n'uma
pompa de sult�o perdulario, iam atravessando na China todos os infernos
tradicionaes da miseria humana--os dias sem arroz, o corpo sem agasalho,
a esmola recusada, a rua lamacenta por morada...
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