Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo I by Alexandre Herculano


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Page 1

Apesar das pondera�es que me faziam homens t�o experimentados nas
cousas da imprensa, hesitei muito tempo em acceder aos seus intuitos.
Ap�s largos annos consumidos na vida agitada das letras, em que o meu
baixel mais de uma vez fora a�outado por violentas tempestades, tinha,
emfim, ancorado no porto tranquillo e feliz do silencio e da
obscuridade. Olhava com uma especie de horror para as vagas revoltas da
immensa lucta das intelligencias, contraste profundo da vida rural a que
me acolhera. Depois, o espirito sentia bem a propria decadencia, cujos
effeitos a interrup��o dos habitos litterarios devia aggravar.
Reflectia, sobretudo, no tedioso de rever escriptos, parte dos quaes
remontavam a tempos ass�s distantes. Podia, na verdade, devia talvez,
deix�-los passar como estavam, no que respeita � maior ou menor exac��o
das doutrinas, porque a pretens�o � infallibilidade � sempre ridicula no
individuo, e eu nunca tive tal pretens�o; mas era indispensavel
castig�-los em rela��o � f�rma. O methodo, o estylo, a linguagem, as
condi�es, em summa, da arte de escrever s�o, no mundo das letras, o que
a boa educa��o, a cortesia, as atten�es, o respeito para com os usos
recebidos s�o no tracto civil, o que os ritos s�o nas sociedades
religiosas. No ente que cogita, a id�a p�de e ha de variar com o decurso
do tempo, com a amplia��o dos horisontes do pensamento. Sobrep�e-se
gradualmente a verdade ao erro, e ainda mal que, outras vezes, � o erro
que succede ao erro, quando n�o � verdade. Aprender quasi sempre �
esquecer; affirmar quasi sempre � negar: esquecer o que aprendemos;
negar o que n�s proprios affirm�mos. � por isso que, no meio de milh�es
de duvidas, cada gera��o lega � que lhe succede poucas verdades
incontrastaveis, e que a lentid�o do progresso real � um bem triste e
desenganador dynamometro da t�o limitada potencia das faculdades
humanas. N�o assim pelo que toca �s formulas externas das manifesta�es
do espirito. O incompleto, o barbaro, o vicioso, o tolhido, o
desordenado, o obscuro n�o s�o o revolutear do oceano das id�as: s�o
simplesmente ignorancia ou pregui�oso desalinho, mais ou menos
indesculpaveis.

Ora a revis�o de escriptos de t�o diversas epochas, ainda limitando-me
ao exame da contextura e execu��o, repugnava-me. Era renovar o tracto
com as letras no que ha nellas menos attractivo, na quest�o da f�rma. E
todavia, sem esse trabalho preliminar, n�o podia decentemente satisfazer
os desejos dos meus editores, desejos que o ultimo d'elles, pouco antes
de fallecer, ainda vivamente manifestava.

Mas, o que era na realidade esta repugnancia ao trabalho, embora fosse
um trabalho ingrato? Era o egoismo dos annos derradeiros; o amor �
quieta��o da intelligencia, que, no outono da vida, � em n�s como o
prenuncio da completa, da eterna paz. Para vencer esta enfermidade dos
espiritos can�ados e gastos, cumpre que surja nelles um incitamento
poderoso, uma necessidade instante. Foi, por�m, este incitamento ou esta
necessidade que, a final, nasceu para mim, justamente das condi�es da
vida rural.

Para o velho que vive na granja, na quinta, no casal, como que perdidos
por entre as collinas e serras do nosso anfractuoso paiz, ha na
existencia uma condi��o que todos os annos lhe prostra o animo por
alguns mezes, doen�a moral, mancha negra da vida rustica, facil de
evitar nas cidades. � o tedio das longas noites de inverno; das horas
estereis em que o peso do silencio e da soledade cai com duplicada for�a
sobre o espirito. Para o velho do ermo, nesses intervallos da vida
exterior, a corrente impetuosa do tempo parece chegar de subito a p�go
dormente e espraiar-se pela sua superficie. A leitura raramente o
acaricia, porque os livros novos s�o raros. A decima vis�o da mesma
id�a, vestida do seu decimo trajo, repelle-o, n�o o distrahe. As
convic�es ardentes, as alegrias das illumina�es subitas, as coleras e
indigna�es que inspiram e que, na mocidade e nos annos viris, enchem a
cella do estudo de turbulencias interiores, de arrebatamentos
indomaveis, de debates inaudiveis, de lagrymas n�o sentidas, de amargo
sorrir, cousas s�o que se desvaneceram. Matou-as o gear do inverno da
existencia. Desfallece-lhe o animo, mal tenta embrenhar-se na selva das
cogita�es, engolfar-se nas ondas dos pensamentos, que, em melhor idade,
lhe roubavam � consciencia os ruidos longinquos e confusos das
multid�es, e aquella especie de zumbido obscuro que ha no silencio
profundo, e as passadas tenebrosas da noite, e o surgir e o galgar do
sol ao zenith, emquanto a penna inspirada arfava, deslisando sobre o
papel, semelhante � v�la branca da bateirinha, que, ao refrescar do
vento, vai e vem de margem a margem, atravez da ria. N�o: para o velho
n�o ha a febre da alma que devora o tempo. Sente-o gotejar no passado,
como os suores da terra que c�hem, lagryma ap�s lagryma, pela claraboia
de galeria deserta na mina abandonada. � verdade que a natureza compensa
o esmorecer e passar do vigor e da actividade intellectual com a propria
somnolencia do espirito, voluptuosidade da velhice, ameno e dourado
p�r-do-sol, que se refrange no espectro da sepultura j� vizinha e o
illumina suavemente. Mas o dormitar do entendimento, para ser deleitoso
enleio, exige o movimento externo e as singelas occupa�es e cuidados da
vida campestre. Sem isso, e � isso que falta muitas vezes nas
interminaveis noites de inverno, a inercia da intelligencia, que vagueia
no indefinito sem o norte da realidade, vai-se convertendo pouco a pouco
em intoleravel tormento; tormento no qual ha, por fim, o que quer que
seja da c�llula circular e esmeradamente branqueiada, onde o grande
criminoso � entregue, s�sinho, � eum�nide da propria consciencia. N'esta
extremidade, por mais somnolenta e obscurecida que esteja a mente, por
mais que ella ame o repouso, o trabalho do espirito, ainda o mais arido,
� preferivel, cem vezes preferivel, ao fluctuar indeciso no vacuo.

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Books | Photos | Paul Mutton | Sat 20th Apr 2024, 3:28